terça-feira, 19 de julho de 2016

#9 - NATAL DE CONSOADA (Manuel de Boaventura, 1885-1973)

O Natal é a grande festa do mundo cristão.
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Em parte alguma de Portugal, a festa do Natal toma um aspecto tão sinceramente festivo e suavemente poético, como no Minho. Natal e Páscoa são festas puramente regionais: não há tristezas nesses dias, a não ser para a família dos ausentes e para aqueles que perderam algum ente querido. Então a alegria, é substituída pelas lágrimas consoladoras da saudade.
A consoada... Quando chega esse grande dia, de regozijo familiar, os que estão longe vêm procurar no lar de seus maiores, os pais, as esposas, os irmãos, os filhos... -- para se reunirem ao redor da mesa comum, no aconchegado banquete da «noite grande».
Sobre a vetusta mesa de castanho refulge a alva toalha de linho, que as mães e as filhas fiaram à lareira, em frígidas noites de invernia; e teceram, depois, em perfumadas manhãs de primavera, quando os homens, na azáfama das agras, suavam o pão de cada dia.
Sobre a nevada toalha, os bojudos pichéis do vinho verde, rubro e saltarelo, os copos reluzentes e os talheres a brilhar, como prata de lei.
Grandes travessas de bacalhau, com batatas farelentas e «tronchos» de hortaliça; o cheiroso arroz, que o polvo purpureou; os bolinhos; os mexidos perfumados a canela; o vinho quente, adoçado com mel; as castanhas, as nozes, os figos... -- ementa farta e sobejante, que atulha a mesa e acoberta a toalha. A abundância é a principal característica da Noite Boa de Natal.
Depois a alegria, a grande alegria, que campeia infrene! A mãe põe, no trafogueiro, o enorme canhoto de carvalho, que há-de sustentar o brasido, e arder toda a noite. As crianças galram e assam as pinhas mansas, para tirar os pinhões e jogar o rapa, e a «supetaina-somandaina».
Um diz: -- «Supetaina!»
Logo outro: -- «Somandaina!»
-- «Pernão ou pares?»
-- «Abre mão e dá-le ares.»
-- «Quatro pares...»
A lenga-lenga faz rir.
A carcaça das pinhas guarda-se, para os dias de trovoada.
Quando lampeja o fogo no Céu, e ribomba o trovão...
- S. Jerónimo! Santa Bárbara Virgem!
...vai para o lume uma pinha da noite santa, para afugentar o sarrisco...; e esconjura-se a trovoada:
- «O Senhor te guie,
p'ra onde não haja,
nem palha, nem grão,
nem alminha de cristão...»
O alcornoque de carvalho ou raízeiro de pinho, arde em labareda; aquece a cozinha e consola os corpos, porque lá fora cai codo branco... E quando os vivos recolherem aos catres, as alminhas dos defuntos da casa, virão, trémulas de pavor, da algidez da terra do adro, ou entanguidas pela neve, da jornada, desde o misterioso País da Verdade, aquecer-se ali, àquela mesma lareira, onde, tempos antes, quando o sangue lhes circulava nas veias e a vida enchia os seus corpos, agora desfeitos, tantas vezes se vingaram das intempéries dezembrinas.
Que saudades que isto faz! O raízeiro crepita, espirrando faúlhas de fogo para os pés das crianças, entretidas no debulho das pinhas e a joguillhar pinhões e nozes ao «par-e-pernão».
O pai e restantes convivas, sentados nas preguiceiras, rezadas as graças a Deus, contam histórias de mouras encantadas, e contos bíblicos, de quando Jesus era menino, e vivia na terra, entre os homens. A avó, já muito velhinta, corcovada, narra-os aos netos traquinas, com paciente carinho e bondade:
«Era uma vez...»
E segue o lindo contarilho. Pensa depois nos seus queridos mortos; o marido, que doze anos antes, numa noite como esta, estivera sentado naquele mesmo taburno, encostado à córa do forno, rezando ao Menino-Deus, com os netinhos sobre os joelhos; nos filhos queridos; no pai, na mãe e nos irmãos, já todos no Reino da Glória, e que não esperarão muito, que ela se lhes vá juntar. Quem sabe se chegará a outro Natal! Ah! não! Não chegará!
Dentro de si, vai um mundo de pensamentos, a correr à desfilada! Já mais de oitenta natais passaram por ela -- alegres uns, bem tristes, outros. O seu corpo mirrado de velhez e entorpecido pelo frio de tantos invernos, não chegará até às neves do futuro Natal. Estava ali, ainda viva, fitando aquele canhoto, que ardia com chama azulada, para aquecer as almas santas, dos que da casa se foram -- ora a gozarem da Bem-aventurança eterna.
Quase meia-noite. Tudo debandou. A velhinta vela, ainda, meio acordada, meio dormente. Começa o solilóquio com os mortos:
-- «António! Que triste é este Natal, sem ti! Teresinha! Que saudades, querida filha, que saudades! Aquece a tua alminha, menina, ao lume da nossa lareira. O teu lugar era aqui, ao meu lado... E tu, Manuel? E tu, João? Aconchegai-vos, filhos! Faz tanto frio lá fora!»
Quando for a sua vez -- quam sabe, se já no primeiro Natal -- a sua alma, se Deus o permitir, virá, também aquecer-se às cinzas daquele lar. Consola-a essa ideia. Está sendo pesada na terra: a morte libertá-la-á do peso dos anos e dar-lhe-á descanso na eternidade imensurável -- mistério que só Deus conhece.



Lapinhas do Natal, Braga, Editora Pax, 1964, pp. 25-31.

nota -
Natal idílico, a que nem a pobreza endémica resistia. Só a morte, porém. Só a saudade dos mortos carrega a noite com os tons mais escuros, naquele Natal, em todos os Natais de qualquer família.